quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

traição


Isaac Silman


é traiçoeira a memória
que se desenha num olhar
fugidio. prefiro pisar o palco.

afinal falta pouco para
o black-out.
sem aplausos.


quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Natal global


Pais natais e pinheiros chineses
por uma pataca
guirlandas e presépios de Taiwan
por tostão e meio
artesanato indiano
fome no Sudão
terrorismo Norueguês
(como o bacalhau)
estrelas polares derretidas
jasmim muçulmano periclitante
champagne francês
inundações no Camboja
caviar russo
Tchetchenos amordaçados
Putin em forma
mercados europeus
nas mãos de Sarkomerkel
Majestade britânica
à parte
e Americanos cow-boys
a fazer justiça própria
as they Ken sem Barbie…

as consciências estão tranquilas
com imensas doações
felizmente que há pobres
para mostrar corações

e assim vai o mundo
num rebuliço medonho
a justificar profundo
este dezembro enfadonho.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

[...]


Orianne F.


não adianta deixar
migalhas
pelo caminho.
não faço questão
de voltar



sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

deambulando com Cesário

Almada Negreiros


falta-me o campo
verde para fugir
à febre amarela
e ao absinto do lado
de dentro do botequim
fin-de-siècle
anacrónico



quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Eugénio revisitado



há um tsunami de estranhamento
que se aproxima
perigosamente
da concha onde
me exílio
deste tempo.

é sufocante o ar que
se respira
são sujas as paredes
secos os animais
esqueléticos os pomares

faz-se tarde
ao amanhecer cada
dia o vento
arrepia as estações
e os violinos
confundem-se
com a miséria
estampada nas calçadas.

mergulhar no sal
da língua é a única
salvação.

domingo, 13 de novembro de 2011

autópsia (αὐτοψία)


αὐτοψία
Paulatina e acentuadamente Theo ia perdendo a destreza vocabular que lhe saltava directamente das mãos para as centenas de cadernos que guardava, numerados e datados, na secretária centenária que o acompanhava desde menino, por via paterna.
Piruetas semânticas que deleitavam uma horda de papa-açordas, aspirantes a leitores privilegiados, que batiam à porta de todos os salões literários, se embebedavam em todas as vernissages, e faziam fila à porta do teatro a fazerem-se a convites desperdiçados e que rodeavam Theo, basbaques, diante de prosas que mal conseguiam ler em voz alta e por isso consideravam eloquentes. Nunca entenderam, portanto, que Theo lhes desconhecia os perfis e tão pouco lhes sentia os perfumes de marca.
Numa tarde invernosa de Novembro, porém, Theo preparava-se para uma leitura pública e ninguém reparou que o seu olhar estava mais distante ainda do que o costume. Pegou nos cadernos que tinha cuidadosamente seleccionado para ler, enfiou-os com pressa na pasta de couro, bastante descosida, e avançou pela sala, curvado mas firme, em direcção à porta de saída.
Cuidaram os clientes literários tratar-se de uma performance desconstrucionista e voltaram-se nas cadeiras, espreitando avidamente o desfecho exemplar do Apolo das letras,
Mas Theo afastava-se cada vez mais, fustigado pelo vento e pela chuva e desceu as escadas, do passeio até à praia. À medida que se aproximava do mar, os seus olhos regrediam da lonjura em direcção às ondas atormentadas até que um sorriso se foi desenhando nos lábios. Estava a conseguir, enfim, um diálogo único, estava de novo a escrever de coração um texto surpreendente, com palavras que tinham asas nos pés.
No seu entusiasmo crescente, foi avançando até perder o pé, até que a água lhe cobriu a cabeça e lhe inundou os pulmões...
Felizmente nem sequer teve tempo para ouvir os aplausos do público fiel.


sábado, 5 de novembro de 2011

pescador de memórias


pareceu-me ouvir-te
do lado de lá do tempo
do lado de cá do rio
onde as nuvens
se desenham maçãs
as gaivotas me tropeçam
nos olhos e o barco
fica na barra
incapaz de fotografar
tempestades.


resta o poema
límpido de lágrimas
para sobreviver
à dor do mar.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

baptismo


R. Magritte, La mémoire, 1948


hoje morreu-me
mais uma célula
instalou-se um ponto negro
na borda da memória
um cancro pronto
a estender as metástases
pelo álbum amarelado
de retratos sépia
hoje encurtou-se o tempo
que me separa
da ausência
afogou-se a lágrima
num bolso roto
desfigurada pela
secura dos olhos.
aqui
vou deixando migalhas
paulatinamente
dispostas a indicarem
o percurso
até ao cais
do poente


domingo, 23 de outubro de 2011

anacronismos


Inês Marques Gomes


1.
estava seco
o verso da folha
quando caiu uma gota
de chuva.

não chegou a tempo
de matar a sede.

2.
a mão que nunca conheceu
o travo da terra
é incapaz de afagar
um rosto só.

3.
há uma sabedoria
só de rugas e de kairos
para perceber que
um dia de sol é
igual a um dia de chuva.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Confissão

Jeronymus Bosch


Não.
Não sou uma ordeira
Mente indignada
Que vai beber uns copos
Na hora da despedida.
Prefiro-me Antígona desempregada
Diante de uma plateia vazia
Já que não são estes os tempos
De uma justiça de sangue.
Não.

[Despudorada contarei
A quem queira ouvir-me
Que o sol também pode ser azul
Ou podem voar os peixes
Sem ser num quadro de Bosch.]


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

mundo meu

04-10-11 - o meu fim de dia


desmoronou-se
enfim
a minha casa.

ficam paredes
para trás, portas e janelas
ficam soalhos
e estantes
fica muito bric-à-brac
e espelhos também.
ficam gatos e sofás
escrivaninhas
e máquinas de costura
ficam quadros e
cortinas ficam
fotografias e cadernos.
- ficam casas -

agora tenho
o mundo para habitar
estes olhos cansados
e um corpo curvado
as mãos menos
ágeis, mas a alma
bem curtida pelo tempo
e um coração aberto ao sol.

já não preciso
de roupa nem artefactos
e o chão é
a minha cama. ou o mar.

(só preciso de respirar)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

olhos meus


Foz do Douro, Porto

                                                                                     (para a Maria Ana)

Um dia
Há-de ser um dia
Eu vou gritar
Por ti
Até me esvair no rio
Que vai entrar no mar:
MAR



terça-feira, 27 de setembro de 2011

ma dame


desnecessárias
as palavras que
inscrevo
na curva da tua cintura,
ma dame,
diluem-se na garganta
do caminho solitário.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

infância



é quando uma andorinha se engana de estação
que percebemos a feliz impossibilidade de afagar o horizonte.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

de regresso a Ítaca


com Kavafis na foz do douro
retardo um pouco mais
o regresso a Ítaca.

gritam de branco
as gaivotas sugerindo
a agilidade do amor
sobre as ondas
outrora safiras
atiradas aos deuses

agora
com Kavafis na foz do douro
é já um corpo tisnado
de sal que apreende de
vagar o sentido de Ítaca.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

tempus


(para a Ana Luísa e a Migui)

tenho um arroz de forno
no meu horizonte
que me sugere
metáforas de afectos
um arroz de frango
com textura de terra
risadas soltas
escorrendo pelo
tinto maduriense
a afagarem-me olhos e falas
fêmeas numa língua
partilhada pelo
signo da amizade
cerzida entre
kronos e kairos.

assim guardarei no
presente do futuro
pedacinhos de ossos
e de lúcia lima
que me alimentaram
o devir antecedente.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

"contrariedades"



não há como designar
com substantivos abstractos
os gumes afiados
que rasuram a brancura dos meus dias
ensanguentados de mortos famintos
e de violência londrinamente obscena.
tudo se resume
a uma janela indecorosa
degradada
sobre a cal
e as palavras saem-me
azedas destas
mãos enrugadas
de vergonha.

domingo, 7 de agosto de 2011

para além de


na rota do silêncio
revisitei os meus labirintos
com a lentidão de uma viagem homérica.

perguntei por mim
às oliveiras e riachos
às sombras dos chaparros
e todos confirmavam
o meu desaparecimento.
nem novas nem sussurros
ou palavras soltas.

é bom saber que
a música serpenteia
para lá da humana condição.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

fadiga

Yuko Ishii


Entre um riacho
Escorrendo pelas
Paredes do verso
E um enviesado
Discurso acerca da
Imponderabilidade
Do tempo
Conjugo os vasos
Da minha janela
Varro a caruma
Dos livros abandonados
E estendo-me na areia
Recolhendo búzios.

Aborrecem-me
Os pensamentos inodoros.

sábado, 9 de julho de 2011

Testemunho


Vou deixar a mesa posta. Pão e vinho com suor e lágrimas de felicidade. O jardim coberto de flores silvestres e os frutos à disposição nas árvores, ou no quintal. Tragam música e poetas. Dancem com o sorriso desenhado no coração e abracem-se em uníssono.
Quando eu morrer façam-me uma festa, porque o sol nos abençoou, a terra nos acolheu, o mar nos salgou. E eu fico aí, num cantinho de cada um.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

presente (e)terno

Isabel Mendes Ferreira

(para a IMF)

há o trigo e o joio. há o tempo chamado peneira. há as malhas que se apertam com o correr dos dias e com a invasão das rugas. em volta da garganta.
e nesse discurso da vida são cada vez mais parcas as pérolas ou rosas que merecem ficar retidas no baú que me acompanha os passos até ao derradeiro. são gotas de água, ou conchas. pode ser um aroma apenas. ou um abraço que é eterno.
é assim que vives em mim, enquanto vivo.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

sem nome

Verushka


Quero um comboio. Ou uma estrada e um chevrolet. Sem Sintra. 
Quero um caminho sem pressas, sinuoso. Quero ir sem saber onde, quero ficar sem saber porquê. Quero não querer.
Ser, apenas. Não ter um nome. Uma língua, uma casa, uma pátria. Nem uma identidade. Nem outra. Cá e lá. Vou indo , sendo, de acordo com a direcção do vento sem responder a ninguém, poeta sem musa, Safo. A ousadia de não aceitar os verbos transitivos e negar os intransitivos.
Quero o limbo, as duas faces da folha, o instante inefável da pequena morte.
Não quero.
Nada. Ninguém.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

a ponte


teimo até à
última gota de sangue
para encontrar-me
só e vária
alheia a toda a
espécie de outros
possessivos que
me rasgam os olhos.

entre mim e o limite
a ponte
é de palavras suculentas.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Instante

Marjolaine Clermont



são mesmos os passos
ou as mesmas calçadas
que percorro hoje?

procuro um cheiro
agridoce uma anca
de cor uma pretidão
entranhada nos
olhos
e a memória diz-me
que é efémero
até o registo do
beijo.

um dia lembrarei
fugazmente
cada passo em cada calçada
com o cheiro
que me preencheu a vida.


nunca são mesmos os passos.

sábado, 11 de junho de 2011

intransitiva

Edward Hopper


Escrevo intransitiva
na curva que desce
até à praia alagada
no sol dos dias passados
entre copos e erva
numa dança errante
sem chão nem portas.

Estou só tranquila
agora que bebo uma tisana
repleta de desertos
e histórias apenas
contadas sem vozes
histriónicas
a ofenderem-me
esta alma polifónica
estendida de seda
sobre a cama vazia.

Escrevo intransitiva
na curva que desce
até à praia e mergulho
no mar.



sexta-feira, 10 de junho de 2011



quando a solidão
se conjuga reflexa
não há tramontana
que consiga derrubá-la.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

bibliomaria



Quando cheguei a kafka encontrei o armário al berto e fui estender a llansol. Foi então que virgínia, travestida de orlando, se zangou com a rosa da gertrudes  e foram discutir joyce como pessoas heterónimas. Mas não conseguiram chegar à lispector da clarice e muito menos aos inversos da ala.
Dei-lhes um sermão a todos os peixes: quem lhes tinha dado autorização para me baralharem assim as estantes, incomodando homero no seu ensaio sobre a cegueira? O silêncio estatelou-se no chão, os olhos baixaram-se e as capas ficaram lídias de fiama.
E eu génios à parte fui beber um copo com musil de fundo.

domingo, 3 de abril de 2011

women in a café


- Bom dia! O costume?
- Sim. E um coração sem canela e resistente a todas as alterações de temperatura.
- Acabadinho de sair, Madame. Ainda palpita.
- Óptimo. Obrigada.

sexta-feira, 25 de março de 2011

grito

Foto de A. G.

(para as minhas filhas Sara e Inês)

o meu silêncio é de pedra.
agora neste tempo virtual
quando as palavras se soltam
ao acaso dos dias
correndo de boca em boca
sem qualquer valor no mercado
da vergonha desperdiçadas
ao vento como pérolas
atiradas a porcos nem que de Ulisses
se saiba alguma nova
aqui neste lugar estreito
onde as gentes se acotovelam
num bulício histérico
cantando desafinadamente
um suposto caminho de uma
glória epifânica
que há-de parir um rato
agora e aqui num grito
de vísceras e de sangue
carregado de afasia
diante da estuporada memória
que não matarei:
o meu silêncio é de pedra.
só pode ser de pedra.

terça-feira, 22 de março de 2011

da voz

Foto de angela f. marques
(para a Lídia Jorge)


gosto de ler aqueles versos que
trazem uma voz agarrada ao pescoço
uma voz tão sua que me
esqueço até de juntar as letras
as sílabas as palavras e fecho os olhos
para ficar a ouvir-lhes apenas
a melodia ao arrepio da minha pele
enrugada. a voz essa música
do corpo que dá de beber à
dor do texto

sexta-feira, 18 de março de 2011

curva suave

Foto de Fabíola Narvaéz


Todos os dias fazia delicada e lentamente aquela suave curva à esquerda, ouvindo um trecho de Bach. Com sinal de luzes porque tinha de entrar na outra faixa de rodagem.
Naquele dia estava um calor anormal para uma noite de Maio, o leitor de cd parou inexplicavelmente e preocupada com a fuga de Bach, esqueceu-se de fazer o sinal de luzes.
Não pôde contar a ninguém como tinha sido especialmente suave, naquele dia, a curva à esquerda.

quinta-feira, 10 de março de 2011

artes poéticas 2

Foto de Achard

a janela rare
faz o verso com
a singeleza de
uma sílaba átona de água.

terça-feira, 8 de março de 2011

carta perdida




Ex.ma sinhora
Doutora dona Ana Luíza Amaral
Minha sinhora, quero neste dia que é nosso dar-lhe os parabéns por ter iscrito outra vezaquele livro que á muitos anos fez de mim mulher feliz e chorei tanto tantas lágrimas que não cabia em mim de emoçom ao ver que havia quem desse valor a mulheres assim como eu sem instrussom e a esfalfarem-se de trabalho para satisfazerem os filhos na boca e os homens na cama. Não fui eu quem o li já se vê mas uma das patroas onde eu andava a dias e a única qualém da paga certa ao fim do mês me respeitava com modos que eu nunca conheci e por isso me contava coisas de livros e políticas que dizia ela que eu não podia deixar que me pusessem o pé em cima do cachasso. Ora depois deu-se o 25 de Abril e foi assim que eu percebi milhor o que ela me tinha explicado e cumprendi ter porque veio o meu irmão de Moçambique com um desarranjo na cabeça quinda agora dura e passa os dias sentado numa cadeira a abanar a cabeça e a gente sem saber o que lhe fazer. Mas eu não estou aqui para lhe falar destas desgraças que toda a gente as tem a fazer-lhe perder o seu tempo e queria só dizer-lhe que chorei outra vez em tantas partes tanto como da primeira, agora a saber que fica tudo explicado para que a gente nova saiba o que nós passamos e não deixem botar por água abaixo as liberdades que agora tenhem e não se ponham pr’aí com cantigas porque um dia levam uma traulitada que deus nos acuda de tal agouro. Por isso vou despedirme com muito agradecimento e admirassão pelo seu trabalho que eu sei reconhecer que é tão importante como lavar a casa dos outros. Desejo-lhe muita saúdinha a si e aos seus, esta que se assina

Maria


segunda-feira, 7 de março de 2011

artes poéticas 1

Foto de Aurore Adeline



um poema sem aditivos
de uma colheita trovadoresca
é sempre a melhor companhia
para uma noite igual a todas as noites.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

crime

Fixei-o bem, olhos nos olhos, apontei a arma ao centro e disparei: matando o outro, fiquei sem mim.
O boneco fechou a porta e saíu sem pestanejar. Já não tinha alma.