domingo, 13 de novembro de 2011

autópsia (αὐτοψία)


αὐτοψία
Paulatina e acentuadamente Theo ia perdendo a destreza vocabular que lhe saltava directamente das mãos para as centenas de cadernos que guardava, numerados e datados, na secretária centenária que o acompanhava desde menino, por via paterna.
Piruetas semânticas que deleitavam uma horda de papa-açordas, aspirantes a leitores privilegiados, que batiam à porta de todos os salões literários, se embebedavam em todas as vernissages, e faziam fila à porta do teatro a fazerem-se a convites desperdiçados e que rodeavam Theo, basbaques, diante de prosas que mal conseguiam ler em voz alta e por isso consideravam eloquentes. Nunca entenderam, portanto, que Theo lhes desconhecia os perfis e tão pouco lhes sentia os perfumes de marca.
Numa tarde invernosa de Novembro, porém, Theo preparava-se para uma leitura pública e ninguém reparou que o seu olhar estava mais distante ainda do que o costume. Pegou nos cadernos que tinha cuidadosamente seleccionado para ler, enfiou-os com pressa na pasta de couro, bastante descosida, e avançou pela sala, curvado mas firme, em direcção à porta de saída.
Cuidaram os clientes literários tratar-se de uma performance desconstrucionista e voltaram-se nas cadeiras, espreitando avidamente o desfecho exemplar do Apolo das letras,
Mas Theo afastava-se cada vez mais, fustigado pelo vento e pela chuva e desceu as escadas, do passeio até à praia. À medida que se aproximava do mar, os seus olhos regrediam da lonjura em direcção às ondas atormentadas até que um sorriso se foi desenhando nos lábios. Estava a conseguir, enfim, um diálogo único, estava de novo a escrever de coração um texto surpreendente, com palavras que tinham asas nos pés.
No seu entusiasmo crescente, foi avançando até perder o pé, até que a água lhe cobriu a cabeça e lhe inundou os pulmões...
Felizmente nem sequer teve tempo para ouvir os aplausos do público fiel.


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