domingo, 25 de março de 2012

resgate


entre o espanto da
infância
e a presente lucidez
enganada
há um longo
percurso de perdas.

sendo impossível a
odisseia
resta ficar à escuta
de cada pulsão
de cada palavra desatinada
de cada gesto perdido
no desígnio único
de continuar
fazendo de conta
que sou quem sou.

segunda-feira, 19 de março de 2012

o/acaso


Tamara de Lempicka, Dormeuse, 1932


haverá talvez
um breve sumário
de paisagens amadas
que possam acompanhar-me
na última ceia
 
mas as palavras
essas
ficaram há
muito inter
ditas
de se entreporem
entre mim e
o acaso.



sexta-feira, 16 de março de 2012

instante


há uma linha quase invisível
entre os dias em que vivemos e aqueles
em que morremos.
menos visível que aquela
que separa o mar do céu
ou uma lágrima de um sorriso.

assim cada segundo de respiração
é uma conquista tão insignificante
que as páginas que folheio
se espreguiçam ao sol-pôr.

quinta-feira, 8 de março de 2012

on ne badine pas...


Gustave Klimt, A vida e a morte, 1916


Quando ela assomou à porta do meu quarto, abri os olhos apesar do silêncio. Aproximou-se pé ante pé e quando estava já bem perto de mim, interpelei-a com um prazer desmesurado.
- Senta-te um pouco. Não precisas de ter pressa.
- Bebes?
- Em serviço, nunca.
- Que tédio! Não tem que ser um trabalho.
- É.
- Despe-te.
Ela tentou afastar-se e aproveitei para lhe retirar o véu negro, que afinal era um pano inteiro que a cobria da cabeça aos pés. E detrás da imagem estereotipada que conhecia dos livros, surgiu o corpo atraente de uma mulher de carne e osso, de pele e odor, de água e fogo. Juntamente com a túnica caiu a máscara e a voz tornou-se doce.
- Não devias ter feito isso…
- O que queres beber?
- Acho melhor não…
- Não quero fugir de nada. Mas gostava de te conhecer.
- E não me conheces, já?
- Só indiretamente. Nunca vieste buscar-me a mim.
- …
- Estou pronta. E agora que te vi, assim despida, é com prazer que te acompanho.
- Nunca ninguém me acompanha com prazer.
- Mas eu, sim.
- Estás a tentar seduzir-me…
- Não posso. És tu que me levas. És tu a predadora.
- Apenas cumpro ordens.
- (Risos) De quem?
- Eu sei que não acreditas. Não vale a pena perder tempo.
E levanta-se para vestir de novo o negro que representa o seu papel. Agarro-lhe a mão, puxo-a para mim e sobre a cambraia beijo-a nos lábios, entregando-me com prazer ao seu domínio. Ela abraça-me pela cintura e leva-me desta vida, sem a leveza da tarefa cumprida, porque a minha entrega foi tranquila.
Morri com um sorriso cúmplice.

domingo, 4 de março de 2012

a última dança



- Você dança?
- On the rocks.
- Com whisky?
- Não. Contigo.
- E o gelo?
- Para o incêndio.
- Qual?
- Vamos até ao inferno.