domingo, 29 de janeiro de 2012

soneto incompleto



quando os olhos distraídos
caem sobre uma fotografia
desbotada pelo tempo
mas colorida na memória

o silêncio rompe as vidraças
espalha os livros pelo chão
entorna a jarra sobre a folha

e a palavra que estava
inscrita a suor e sangue
evapora-se com o vento.

sábado, 21 de janeiro de 2012

jazz



voltei a ouvir jazz
com a fúria dos vinte anos
a loucura dos vinte e cinco
e a lucidez dos trinta:
ávida e serena.

Porto, 1988



ouço aqui jazz(em)
o corpo e as palavras
vazias com o tempo
escorregadio por entre
os dedos sequiosos
de alguma verdura
perdida pelos cinquenta.

irónica idade tranquilamente
debruçada sobre
a morte.

Porto, 2012







domingo, 15 de janeiro de 2012

inutilidades



as palavras que escrevo
se escrevo
têm a duração
da tragédia:
quando o destino
as fulmina
em palco
já Khronos as engolira.

sábado, 14 de janeiro de 2012

hélas!


Christiane Zschommler

quando os fins de dia
são vazios como os fins de semana
quebrados como os fins de mês
frios como os fins de ano
e até o fim de milénio foi
pindérico face ao fin-de-siècle
então é necessário vestir de pompa
sem circunstância o fim da vida

hélas! et je n'aurai pas lu
tous les livres...





domingo, 8 de janeiro de 2012

e/ou


somos  nós ou as palavras?

onde antes havia azul
cresceu uma muralha
de enganos alimentada
por pequenos deuses caseiros

somos nós ou as palavras

quem diz o amor
com todas as sílabas
como se o tempo
não tivesse parado?

somos nós e as palavras.



sábado, 7 de janeiro de 2012

Oração ao meu Pai


Auto-retrato de José Marques


abraço-te
o corpo ausente que
não suporta o peso da minha cabeça
encostada no teu colo
resta-me o sorriso
a que me agarro
para te dizer que sim
que te sou igual
na solidão e na tristeza
na alegria e no amor
tão igual que nem sei bem
a que se deve este vazio
que me assola em manhãs soalheiras
ou em dias de tempestade
esta vontade de te envolver
num abraço
sempre presente

.és a minha afasia
recorrente.
Inch allah!

domingo, 1 de janeiro de 2012

Lady Blue


- Demoras?
-  (Silêncio)
- Faz 10 anos...
- O quê?
- Que eu te inventei.
- É por isso que tenho direito a um copo?
- Se quiseres...
- E posso tratar-te por tu?
- Como queiras.
- Isto é que é um ano verdadeiramente novo!
- (Silêncio)
- E então os dez anos querem dizer alguma coisa especial?
- Talvez... Gostava de te dar vida.
- ... Não posso crer! A sério?
- É. Já creseceste. Talvez estejas mesmo madura. É melhor fazer qualquer coisa de ti, antes que caias de podre.
- Ah...! Continuas simpática.
- Já não estou em idade de mudar.
- E o que queres fazer de mim?
- ... Uma gaja do século XXI...
- E o que é isso?
- Pois... é aí que a porca torce o rabo...
- Quer dizer, convidaste-me para nada... conversa fiada...
- Preciso de conviver contigo.
- Claro. E eu sempre às tuas ordens.
- Se não quiseres, tudo bem. Voltas para a gaveta e morres asfixiada. (Pausa) Vai-te foder.
- Talvez seja melhor.
- Adeus.